O cineasta Vandré Fernandes fala sobre o cinema negro e como as políticas públicas da Ancine tornaram possível que mulheres negras realizassem seus filmes.
Nos últimos 5 anos, produções realizadas por mulheres negras com enfoque na luta contra o racismo têm ganhado uma força extraordinária no audiovisual nacional. São histórias contadas a partir de um olhar próprio e que por mais de 100 anos são ocultadas da nossa produção cultural.
Quem tem acompanhado o trabalho dessas jovens mulheres negras percebe o quão autoral – e necessárias – são suas produções. Antes de surgir essas cineastas, apenas Adélia Sampaio, em 1984, tinha realizado um longa intitulado “Amor Maldito”, sobre o relacionamento entre duas mulheres.
O olhar da mulher negra
Se passaram quase 35 anos para que uma nova negra, Viviane Ferreira, pudesse assumir a direção de um longa. Ela cresceu na periferia de Salvador. Atuante no movimento negro, mudou-se São Paulo onde fez cursos de cinema e se formou em Direito.
A jovem cineasta transformou o curta “O Dia de Jerusa” em longa chamado “Um Dia com Jerusa”. De uma sensibilidade absurda, ela fala da solidão, da fraternidade, da complacência. Infelizmente, o longa não está disponível em nenhuma plataforma de streaming, apenas o curta está no Youtube.
Outra que segue a mesma linha é Glênda Nicácio com o filme “Café com Canela”. Mineira, se formou em Cinema na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. No filme, ela divide a direção com Ari Rosa. Sua trama também vai falar da solidariedade entre duas gerações de
mulheres que se reencontram, uma professora e sua ex-aluna, que entre tantas dificuldades, frustações e tristezas vão se tornando amigas e tendo força para tocar suas vidas.
Na direção de curtas, algumas diretoras se destacam. Entre elas, temos a conhecida atriz de novelas, Ana Flávia Cavalcante, com seu filme “Rã”, que fala sobre uma mulher chefe de família e a sua relação com a comunidade. Um mundo que Ana conhece bem, pois nasceu e cresceu na periferia de Diadema, em São Paulo. Outro curta é “Sem Asas”, de Renata Martins, que expõe o racismo existente no Brasil levando a juventude ao genocídio. Menciono, ainda, “Rainha”, da premiadíssima Sabrina Fidalgo, sobre o sonho de uma rainha da bateria. E há muitas outras mulheres negras atuando na ficção e também na produção e direção de documentários.
Lugar de mulher preta é também na direção
Nos últimos anos, ganhou força a discussão sobre lugar de fala, ou seja, o direito à auto representação, de que a perspectiva sobre os temas deve ser considerada principalmente a partir do olhar do sujeito social diretamente envolvido. Assim, o debate sobre o racismo estrutural tem que ter como protagonista os negros, os debates sobre o machismo impregnado na sociedade tem que dar voz às mulheres.
Toda obra audiovisual, sua história e narrativa, tem uma digital importante da direção. Afinal, ela reflete os valores e origens sociais, econômicas e culturais do diretor ou diretora. Portanto, quando um filme que trata do racismo é dirigido por negros, essa história ganha mais vivacidade e relevância.
Isso está impresso nos filmes dirigidos por estas mulheres negras. É perceptível na interpretação das atrizes – seus olhares, seus gestos, tudo é muito convincente, afinal, as diretoras sabem do que estão falando: a realidade da aposentada Jerusa, da pesquisadora Silvia, o cotidiano de uma mãe negra, o seu medo de perder o filho, reflexo do extermínio de jovens negros nas periferias.
No documentário de Day Rodrigues, Mulheres Negras: Projetos de Mundo, a artista Preta Rara fala das gerações de sua família: a bisavó era escrava, a avó e sua mãe eram empregadas domésticas. Ela própria chegou a trabalhar como doméstica e foi muito maltratada. Ela relata que para a maioria das famílias como a dela, há uma visão de que para a mulher negra só existe um caminho possível: o de ser empregada doméstica. Mas ela ressalta que é preciso construir outros caminhos. As mulheres negras cineastas ajudam a quebrar essa realidade e mostram que lugar de preta é também da direção cinematográfica.
Por fim, essas cineastas fogem dos estereótipos do negro criminoso, do traficante, da empregada doméstica, contado em verso e prosa pelo nosso cinema embranquecido.
Democracia e cotas
Foram nos governos progressistas que a Agência Nacional de Cinema (Ancine) criou cotas para incluir negros, negras, LGBT’s, pessoas com deficiência em editais de fomento. Além disso, foram estipuladas cotas para descentralizar as produções para outras regiões do país. Isso favoreceu a realização de filmes de norte a sul, antes muito concentrados no eixo Rio/São Paulo. Essa democratização possibilitou criar novos olhares para o cinema e expor a diversidade de nossa cultura. E não é só isso. Também se abriu editais de curtas, de documentários e do primeiro filme. Esse último revelou muitos cineastas.
Foi através dessas políticas públicas que mulheres negras puderam realizar os seus trabalhos. Sem a cota de inclusão isso não seria possível. Mas não é apenas no cinema. Sem a obrigação de cotas para negros, eles também estariam fora das universidades. É preciso ter reparação em todas as áreas. E o cinema começou a engatinhar nesse sentido.
Infelizmente, o que estamos assistindo é que todo avanço que tivemos nas políticas para o audiovisual no país está em cheque com o governo Bolsonaro. Com isso, também, toda a possibilidade de olhares múltiplos e do cinema tão vivo quanto o realizado pelas mulheres negras pode deixar existir.
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