O Festival de Gramado é um potente espaço de resistência e defesa do cinema brasileiro. Esta edição não poderia ser diferente. A denúncia vai para o desmonte da Cinemateca Brasileira e o projeto político que sustenta esse tipo de (des)governo.
Leia Carta de Gramado na íntegra:
A produção cultural brasileira já enfrentou ataques demolidores por parte de muitos governos – os anos Collor foram exemplares nesse sentido: destruíram a EMBRAFILME e derrubaram as estruturas do cinema brasileiro, levando consigo estúdios, laboratórios, planos e sonhos. Foram 5 anos de terra arrasada, mas depois de muito esforço e luta nos reerguemos. Os governos terminam, mas a produção cultural segue pulsando, pois é uma necessidade atávica dos seres humanos, apesar de seus governantes.
Até mesmo quando não ameaçados diretamente, os criadores e produtores culturais brasileiros têm sido, no máximo, tolerados. E quando reconhecidos em sua importância, recebem recursos e programas de apoio como se fossem favores – concessões para algo supérfluo. Jamais a cultura e as artes receberam o devido reconhecimento do que representam para a cidadania, para a educação, para uma real inclusão, para a constituição de nossas identidades diversas. Em raros momentos gozaram de estruturas sólidas e sustentáveis de apoio que por isso se desfizeram.
E hoje, quando tudo ou quase tudo que já era precário desmanchou-se no ar, são poucas as perspectivas de reconstrução. Viveremos um novo momento desértico? Pode ser; aliás já o vivemos em parte, mas não iremos desaparecer porque não se mata uma cultura e o nosso cinema é a prova indiscutível da capacidade de resistir e de seguir criando.
Mas será mesmo possível e desejável apagar o nosso passado, o conjunto das imagens que encerram os nossos olhares, depositado na Cinemateca Brasileira? Fazer com que sumam do mapa cinematográfico os clássicos brasileiros que atingiram inegável reconhecimento aqui e no mundo? Levará o descaso brasileiro à anulação de importantes contribuições à linguagem estudadas em livros e teses, que deram origem a outros filmes e foram eternizados em restauros nas mais importantes cinematecas do mundo?
A Cinemateca Brasileira abriga esse grande tesouro. Nela estão também depositados registros de amadores que se estendem do início do século XX até hoje, todo o arquivo do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, o DIP; uma parte considerável do acervo da TV Tupi, todas as imagens e matérias do Canal 100, além de parte considerável da produção audiovisual brasileira contemporânea. São 250.000 rolos de filmes e cerca de 1 milhão de documentos.
Mais uma pergunta: o país que assiste impotente à queima da fauna e da flora do Pantanal e da Amazônia irá tolerar o apagamento das imagens que constituem a nossa identidade como nação? Aceitaria a ocorrência de uma nova vergonha que se somaria à vasta lista de vergonhas nacionais, entre elas o calamitoso e anunciado incêndio do Museu Nacional?
Em dezembro do ano passado, quando o Ministério da Educação não renovou o contrato com a Associação Roquette Pinto, Os responsável pela gestão anterior da Cinemateca Brasileira, esta última ficou acéfala e em quase total abandono por seis meses, fruto da omissão da Secretaria Especial de Cultura que na ocasião não resgatou a instituição para os seus quadros.
Dado o risco alarmante para o seu acervo e instalações, ocorreram importantes mobilizações da comunidade cinematográfica, com destacado apoio internacional e da sociedade brasileira. A tais manifestações, que contaram com ampla cobertura da imprensa, se somou uma ação contra a União movida pelo Ministério Público Federal. No início de agosto, em aparente resposta a estas pressões, a União, através da Secretaria do Audiovisual, retomou as chaves da Cinemateca que ainda estavam em mãos da Roquette Pinto e prometeu providências.
Na ocasião, sentimos que o Secretário Substituto inaugurava um novo momento de diálogo com as entidades da sociedade civil e a comunidade cinematográfica. Chegamos até mesmo a discutir alternativas para que se garantisse a conservação e a integridade do acervo, bem como das edificações da Cinemateca.
O então Secretário pediu duas semanas de prazo para que os serviços básicos interrompidos por falta de pagamentos fossem recontratados e, nova surpresa, sugeriu a elaboração de uma proposta por parte da Sociedade Amigos da Cinemateca, a SAC, para que esta pudesse contratar provisoriamente, por três meses, os funcionários necessários para a manutenção do acervo e do equipamento da instituição. O pagamento seria feito graças às emendas de vereadores paulistanos solidários à luta pela Cinemateca – como Gilberto Natalini, Celso Giannazi e Eliseo Gabriel – que motivaram seus companheiros de Câmara Muncipal a também destinarem parcelas de suas emendas. A prefeitura de São Paulo através da SPCine contribuiria para viabilizar tal repasse ainda neste exercício.
Ao mesmo tempo o Secretário afirmou que a SAV divulgaria em uma ou duas semanas o chamamento para a escolha de uma nova OS para gerir a Cinemateca, com um novo regimento ao qual seria reincorporado o Conselho Consultivo. Composto por entidades do audiovisual, personalidades e representantes da sociedade civil, o Conselho fora desativado pelo então Ministério da Cultura, em 2013.
Transcorridos 50 dias da citada entrega de chaves, após inúmeros telefonemas, mensagens, consultas entre as partes e adiamentos, foram garantidos os serviços básicos e emergenciais de água e de luz (cujos pagamento dos atrasados ainda dependem do reconhecimento da dívida que a ACERP pleiteia); foram contratados os serviços de limpeza, embora a empresa não seja especializada; foram contratados serviços de manutenção dos equipamentos de climatização, embora a empresa não ofereça a expertise necessária; foram contratadas uma mini brigada anti-incêndio composta por dois funcionários e uma empresa de vigilância patrimonial das dependências.
No entanto, entre as necessidades emergenciais falta o fundamental trabalho dos funcionários especializados sem os quais o acervo não estará preservado, mesmo com a retomada dos serviços básicos acima descritos. O plano de trabalho temporário solicitado pelo Secretário à Sociedade Amigos da Cinemateca para o serviço de operação de equipamentos específicos para o monitoramento, a conservação e a segurança do acervo, ainda não foi aprovado. Apesar dos esforços empreendidos por todas as partes, segue inalterada a situação de enorme risco na Cinemateca Brasileira.
Vale dizer ainda que a dotação prevista no projeto de Lei Orçamentária da União para a Cinemateca Brasileira no ano de 2021 é uma regressão jamais assistida: dos já insuficientes R$ 12.500.000,00 anuais previstos, mas não repassados neste ano de 2020, a previsão é de uma queda brutal para R$ 4.700.000,00 com eventuais R$ 5.297.692,00 que dependerão de aprovação no Congresso! Com uma verba como essa a Cinemateca Brasileira, será reduzida a um mero depósito de filmes, negando toda a sua importância e excelência como centro de preservação, irradiador do cinema e da cultura.
Assim, esse Manifesto das entidades envolvidas no movimento pela Cinemateca Brasileira é um alerta à comunidade audiovisual e à sociedade brasileira bem como ao atual governo que hoje é inteiramente responsável por tudo o que vier a ocorrer com uma das maiores Cinematecas da América Latina e que já foi considerada um dos 5 (cinco) mais importantes centros de restauração de filmes do mundo.
As manifestações públicas ou não, que conheceram um justo e paciente arrefecimento em função das negociações, podem ser retomadas se o importante diálogo que iniciamos não resultar em soluções efetivas. É urgente que se coloque um ponto final à insustentável situação de risco em que se encontra a Cinemateca.
As associações de cineastas, de preservadores Audiovisuais, as cinematecas de todo o mundo, os festivais de cinema, a imprensa nacional e internacional, a comunidade artística, os frequentadores e amantes do cinema, aguardam uma solução urgente e imediata para a Cinemateca Brasileira, quem sabe, viabilizada por uma parceria inédita entre o poder público e a sociedade civil.
PELA REABERTURA IMEDIATA DA CINEMATECA BRASILEIRA!”
Signatários:
SOS CINEMATECA-APACI – Associação Paulista de Cineastas
ABPA – Associação Brasileira da Preservação Audiovisual
CINEMATECA VIVA
CINEMATECA ACESA
Adesões
Conexões Gramado Film Market e 48º Festival de Cinema de Gramado
ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema
ABRACI- Associação Brasileira de Cineastas (RJ)
ACCIRS Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul
FRENTE PARLAMENTAR DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO
FRENTE PARLAMENTAR MISTA EM DEFESA DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL
DA CÂMARA FEDERAL
PAVI- Pesquisadores do Audiovisual e da Iconografia
SIAESP – Sindicato da Indústria Visual do Estado de São Paulo
SIAV Sindicato da Industria Audiovisual do Rio Grande do Sul
COLEGIADO SETORIAL do Audiovisual do Rio Grande do Sul
Mais informações: Site do Festival de Gramado
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